sexta-feira, maio 10, 2024
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Crítica | Dark – 2ª Temporada (2019)

                                         “TUDO ESTÁ CONECTADO”

                                                TIQUE TAQUE

 

De uma citação de Albert Einstein na temporada 1, a 2ª temporada de Dark salta para uma de Friedrich Nietzsche. “Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”, dizem  os primeiros segundos, nos anunciando a volta da trama.

Uma das séries mais viciantes da Netflix é também uma das mais complexas. Na sua segunda temporada, o espectador tomará mais doses mentais de perplexidade.

Quase dois anos depois, a produção alemã retorna em grande estilo ao abraçar e encarar sua veia sci-fi, sem deixar os mistérios para trás.

A segunda temporada de Dark estreou com grandes desafios criados por seu excelente primeiro ano. Para se manter autêntica, a série soube manter o ritmo estabelecido anteriormente, fortalecendo a atmosfera de suspense ao apostar ainda mais em seus enigmas, escolhendo com precisão os momentos de apresentá-los e resolvê-los.

Como vimos na cena final da temporada anterior, Jonas Kahnwald (Louis Hofmann)  se encontra em um futuro distante (2052) após sua versão mais velha tentar destruir o buraco de minhoca da cidade de Winden, na Alemanha. O mundo pós-apocalíptico traz novos perigos para o adolescente, que descobre uma forma de voltar ao passado após se esgueirar por um túnel e encontrar um grande segredo. (Caso você pense que a série vai separar alguns minutinhos para relembrar, mude sua expectativa. Dark volta literalmente como uma sequência direta, e não se importa em explicar nada para o espectador). 

Netflix//JONAS – DARK

Dark é viciante, genial e nada fácil de assistir — no sentido positivo. A segunda temporada te deixará instigado a todo momento pensando em teorias para o final e a cada episódio novas surpresas aparecem para derrubar o que você pensou anteriormente. Fãs de ficção científica que ainda não conferiram Dark, estão perdendo a chance de acompanhar uma abordagem revigorante e talvez um pouco mais original sobre temas que costumam ser explorados a bessa em diversas mídias. Mas mesmo sofrendo de pequenas fagulhas de ‘história de transição’ para um novo ciclo, a intensidade de acompanhar esta série, realmente imerso, continua alucinante.

Dark tem um ar um tanto pesado. Seja na sua trama de quebrar a cabeça, ou mesmo na própria fotografia, mas ela consegue ao mesmo tempo se adequar estranhamente aos moldes narrativos que faz o público americano e o resto do mundo ser atraido-sendo uma história Alemã, mas também se distingue de outras produções similares, livre de comparações mais casuais ou por execuções que chamem atenção do espectador.

Retomando aos focos temporais da primeira temporada, os diversos personagens da série vão entendendo cada vez mais sobre a situação absurda em que se encontram, e a progressão narrativa de Dark continua tendo o mesmo apreço pela compreensão do espectador em meio à tantas trajetórias. Este é, com certeza, o melhor aspecto da série, conseguindo manter o público engajado em meio à uma progressão linear que passeia por diversos eventos não-lineares, providenciando as peças necessárias para se compreender a passagem de tempo, enquanto também conta sua história de forma identificável e emocionalmente eficiente.

Ainda que a história gire em torno das quatro famílias que estabeleceram os principais dramas da primeira temporada, ela também abre espaço para que outros personagens ganhem destaque. Esse novo foco, que transita também entre personagens novos e coadjuvantes, permite uma alternância de pontos de vista que amplifica as ramificações de ações que, mesmo pequenas, têm a capacidade de gerar consequências catastróficas.

Noah O “padre” que vem influenciando Bartosz (Paul Lux), amigo de Jonas, e que construiu uma máquina do tempo na década de 80 tem o melhor arco de Dark. A princípio, imaginamos que ele fosse uma espécie de vião sob a postura rígida e a vontade de dominar a viagem no tempo. A segunda temporada desenvolve ainda mais o potencial dele, transformado em uma figura perigosa e cujo mistério carrega a série. Ao seu lado aparece um nome inédito, mais uma pessoa que fica fascinada com a proposta Sic Mundus Creatus Est (“Assim o mundo foi criado”), gravada nos portais e que foi símbolo da filosofia do hermetismo.

Sic Mundus Creatus Est

Sem a necessidade de justificar cada novo conceito sobrenatural com teorias existentes no mundo real,  abre mais espaço para as viagens no tempo. Durante as investigações a respeito do sumiço de Mikkel Nielsen (Daan Lennard Liebrenz), mais pessoas descobrem a possibilidade de visitar outros períodos, criando um verdadeiro fluxo de gente fora de seu tempo.

Diversas obras de ficção científica que lidam com viagens no tempo precisam trabalhar com os empecilhos que o conceito teórico inevitavelmente traz consigo. Tais obras acabam criando “regras” que ajudem a sedimentar o funcionamento desta dinâmica especulativa, com algumas destas “regras” sendo mais criativas que outras. E diferentemente dessa outras histórias, as maquinações e manipulações ficam em segundo plano por aqui. O comportamento destes personagens e a maneira como acabam influenciando a “linha” do tempo são regidos por reações puramente humanas, mas que nunca deixam de ser o real objeto de exploração desta história, e, acaba contornando boa parte destes empecilhos fechando-se em torno do seu conceito de “ciclo temporal”. Por isso os desenvolvimentos orgânicos de seus personagens complementam o entendimento deste “ciclo”.

A trama da Netflix pode estar repleta de teorias complexas sobre o funcionamento do que se chamaria de “destino”, mas os momentos que fazem o espectador realmente se envolver com esta história são aqueles mais naturais e compreensíveis, como uma personagem que não vê sentido em sua vida deixada para trás, ou outra que deixa o ego e a ambição entrarem na frente de suas intenções conscientes. No final, tudo soa “naturalmente conectado” para o espectador, e os roteiristas podem se orgulhar de um trabalho bem feito. Até mesmo a entrada de um novo detetive que poderia soar como um mero artifício narrativo para manter a sobriedade desta temporada mais megalomaníaca. No entanto, até isso acabou se provando parte de um plano maior, com repercussões que devem ter certa importância no último ano. 

Consciente de sua densidade, o roteiro consegue se manter coeso ao localizar pessoas com motivações variadas através de linhas temporais com a utilização de metáforas e instrumentos que descartam qualquer pudor que a série alemã trouxe anteriormente em se assumir como uma fantasia.

Com um trabalho visual meticuloso, a nova temporada amplia não só sua complexidade narrativa, como também seu espetáculo visual. Ao visitar novos períodos históricos (e até mesmo materializar uma distopia), a produção expande sua capacidade de entreter ao adicionar mais camadas que compõem um panorama cada vez maior. Ao mesmo tempo, as diferentes linhas do tempo e os vários personagens não deixam tediosa a experiência de entrar neste mundo surreal e técnico, pelo contrário. Cada vez mais você se sente fisgado pelas viradas de mesa e como as revelações influenciam a jornada de cada personagem.

Esta foi uma temporada de transição entre as duas circunstâncias que realmente importam para a história como um todo. Se antes, tínhamos um mundo a ser explorado na primeira temporada, este segundo ano trabalha em cima da urgência (com direito à uma contagem regressiva até o apocalipse) perante o novo mundo que será propriamente apresentado na terceira temporada. Há muito o que se resolver, e muitas peças a serem encaixadas neste grande mosaico, mas se o gancho final do último episódio indica qualquer coisa, é que Dark ainda tem algumas grandes cartas na manga para utilizar como bem entender.

Há um considerável aprofundamento no drama dos personagens, algo que inexistia anteriormente, já que a primeira temporada mantinha justamente todos, inclusive Jonas, apenas na superfície. Com isso, passamos a entender mais – mas não completamente – o papel do personagem na complexa engrenagem da série, assim como suas conexões com os mais diversos personagens, notadamente o misterioso Noah (Mark Waschke) e a diretora da usina nuclear (em 1986) Claudia Tiedemann, que vemos em três versões diferentes. Esses dois contrapontos a Jonas – Noah e Claudia – ganham também ótimos desenvolvimentos que ajudam a dissipar as dúvidas e a fazer as peças se encaixarem (um pouco) mais suavemente.

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Há também uma participação mais relevante dos amigos adolescentes do Jonas de 2019, Martha e Magnus Nielsen (Lisa Vicari e Moritz Jahn) e Franziska Doppler (Gina Stiebitz), que leva a tira-colo sua irmã surda mais nova, Elisabeth (Carlotta von Falkenhayn), esta com especial significado para a história. Esses jovens, vistos principalmente em 2019 e também o delegado aposentado Egon Tiedemann (Christina Pätzold), que, em 1987 (lembre-se, seis meses se passaram, pelo que os anos originais 1953, 1986, 2019 e 2052 são, agora, 1954, 1987, 2020 e 2053), reabre o caso da prisão de Ulrich Nielsen (Oliver Masucci na versão de 2020 e Winfried Glatzeder na versão de 1987) que ele mesmo – ou sua versão mais nova vivida por Sebastian Hülk – foi responsável em 1953. Dark faz como uma epidemia e “espalha” o conceito de viagem no tempo plantado na primeira, retirando esse privilégio de Jonas, o que coloca muitos personagens quase na mesma página, por assim dizer, ainda que o protagonista sempre esteja alguns passos a frente de maneiras diferentes, inclusive com a introdução do deformado e misterioso Adam (Dietrich Hollinderbäumer), em 1921, líder do Sic Mundus.

Mas a inserção de Adam na história, assim como uma maior importância dada justamente a Charlotte (Karoline Eichhorn), a chefe de polícia da cidade em 2019, e a seu passado, com uma revelação bombástica (ou nem tanto) ao final, além dos elementos puros de sci-fi como a Partícula de Deus (ou, tecnicamente, a Partícula Bóson de Higgs, teorizada nos anos 60 e comprovada nos anos 2000) e seus efeitos em Winden e a investigação iniciada em 2020 por Clausen (Sylvester Groth), único personagem “de fora” que o leva na direção de outro personagem misterioso, Aleksander Tiedemann (Peter Benedict), substituem todos os mistérios que são em tese solucionados ao longo da temporada e preparam o encerramento da série. 

Mas ainda mais fascinante, e isso fica mais saliente agora, na segunda temporada, é que todo o lado científico e tecnológico ganha um belo paralelismo religioso bem costurado na narrativa principal e que é ilustrado pelo assustador e ao mesmo tempo lindíssimo “A Queda dos Condenados”, painel barroco do pintor flamengo Peter Paul Rubens que ornamenta o gigantesco escritório subterrâneo de Adam. Nele, o arcanjo Miguel e outros celestiais arremessam os pecadores no fogo do inferno no que parece ser um ciclo eterno, inescapável. Rubens cria uma das mais pesadas e angustiantes visões do inferno e do apocalipse e o quadro ilustra muito bem não só a escolha da principal paleta de cores da série, como também toda a temática de fim de mundo e de “ciclo” que permeia a narrativa como uma versão niilista e desesperançosa da obra-prima de Michelangelo na Capela Sistina. Some-se a isso os nomes dos personagens-chave, Adam (Adão), Noah (Noé) e Jonas e a equiparação de suas versões bíblicas ao que vemos na série e pronto, as fronteiras entre misticismo e ciência passam a ficar nubladas e a interpenetrar-se, uma alegorizando a outra em mais um tipo de ciclo.

Ao solidificar seus pontos positivos, Dark se mantém firme em uma vastidão de tramas e garante um retorno em alto nível, e com previsão de terminar na terceira temporada, o futuro da produção não poderia ser mais animador (e desesperador ao mesmo tempo).

O grande acerto de Dark na segunda temporada é explorar ainda mais ‘o vilão’- que depois se descobre que não existe nem vilão, nem mocinho. E a linha que une a ciência e a ficção. Se por um lado temos as teorias de viagem no tempo e a explicação do físico H.G. Tannhaus ( Christian Steyer na versão de 1987 e Arnd Klawitter na versão de 1954) com o livro A Journey Through Time, há o lado místico e oculto que complementa o racional.

Mas a série não apressa sua conclusões, deixando claro, inclusive, que conclusões podem ser superestimadas em meio a este ciclo temporal. Personagens podem morrer, mas suas mortes não representam seus “finais”, uma vez que não fazemos ideia de por onde passaram ou como influenciaram certos eventos em suas vidas. 

Seja retratando paradoxos de forma elucidante, ou apenas proporcionando momentos emotivos para seus personagens, que só seriam possíveis em uma história como esta, Dark continua fazendo um bom uso do espaço que criou em sua primeira temporada, ainda que suas várias perguntas sem resposta deixem que boa parte de sua validação e gratificação fique a cargo do último e terceiro ano.

 

Dark traz uma segunda temporada que é brilhante, mas o nó na cabeça piora ainda mais. E toda aquela confusão proposital entre nomes, linhas temporais e versões dos mesmos personagens, grande charme da primeira temporada, é suavizada consideravelmente aqui, não só por já termos passado da fase “introdutória”, mas também porque a nova temporada passa a mais firmemente girar em torno de Jonas Kahnwald  e suas questões (além dos outros personagens que entram na linha de frente como falei).

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