“Those people are my family”
“I call them my children … because they are”
Junho é um mês especial. É o mês do orgulho LGBTQ+,e sendo assim várias empresas tendem a fazer merchandising com base nesses temas, inclusive a Netflix que acaba de lançar mais uma seriado sobre diversidade. Bom, uma minissérie sobre família, aceitação e empoderamento.
Chega ao catálogo ‘Crônicas de San Francisco’, uma produção baseada na aclamada série de livros Tales of the city, do americano Armistead Maupin. A série é, na verdade, uma sequência não tão direta de uma outra, lançada em 1993, posteriormente em 1998 e 2001. Inclusive antigos personagens são interpretados pelos mesmos atores, que juntos a um novo elenco buscam chamar a atenção para uma nova geração LGBTQ+.
O novo drama da Netflix acompanha Mary Ann (interpretada pela magnífica Laura Linney), uma mulher na crise da meia-idade que, chega a San Francisco para a festa de 90 anos da sua matriarca Anna Madrigal (excepcionalmente sendo interpretada pela atriz Olympia Dukakis). Acaba por ela se reunindo novamente com sua filha Shawna (Ellen Page) e seu ex-marido Brian(Paul Gross), vinte anos depois de ter abandonado tudo para trás para ir ao alcance de sua carreira. Mary Ann é logo atraída novamente para o mesmo universo de Anna Madrigal e da nova comunidade LGBTQ+ vivendo no número 28 de Barbary Lane. Agora ela tem de se acostumar com uma nova realidade que levam à alternativos dramas.
O seriado tem apenas 10 episódios de uma hora cada, mas vale apena passar o final de semana para maratonar, sabendo que as perspectivas sobre essa comunidade vão mudando constantemente, e sendo marcada principalmente pelas comparações entre diferentes gerações que a protagonizam.
Mas tem muito mais acontecendo em “Tales of the city” (Talvez até um pouco demais). O antigo BFF de Ann, Michael ‘Mouse’ Tolliver (Murray Bartlett de “Looking”) que ainda vive em Barbary lane em seus plenos 55 anos, está lidando com fato de estar namorando Ben (Charlie Barnett de “Boneca Russa”) um cara muito mais jovem, tirando fato de o status de Michael ser positivo para HIV e é claro seus ex-namorados voltando com histórias enterradas profundamente; Os novos residentes de Barbary lane, Jake (Garcia) and Margot (May Hong), que devem se adaptar seu relacionamento depois do Jake ter concluído a transição que ele queria, mas tendo também sendo Margot uma lésbica que namora um homem trans que está a descobrir sua própria sexualidade; e as hilárias apresentações e piadas de dois gêmeos com o instagram e a vida social como um sub-plot vividos por Ashley Park e Christopher Larkin.
Criado por Lauren Morelli (cuja experiência anterior em escrever e produzir programas de TV estava em “Orange is the New Black”), e o produtor executivo Alan Poul (“Six Feet Under”), acham uma maneira de transportar e honrar o espírito do show original enquanto celebram a cultura queer de hoje em dia, esse “Tales of the City” tem uma gama de tramas necessárias, ou pelo menos complicações de caráter para achar o que precisamos.
É claro que apresentar pequenas razões de persuasão dentro de um grupo completo de espectros não é uma tarefa fácil, mas talvez fique mais fácil quando se vê um baita time por trás das câmeras que também fazem parte da comunidade, o que faz com que uma variedade de perspectivas surjam para a série seguir como uma ambição que é (uma celebração de diversas identidades e estilos de vida com uma grande quantidade de nudez e algumas representações gráficas de sexo e afins, incluindo muitas drogas e bebidas. Não atoa tem uma classificação para maiores de 18 anos).
Em um dos episódios Shawna repreende Mary Ann sobre ela ter fugido e sobre ser sua mãe biológica enquanto fumam no telhado. Mas o mais chocante para Mary é saber que ninguém, nem seus amigos ou seu pai, ou até mesmo a matriarca, chega a revelar para a garota a verdade, de que foi adotada há 25 anos atrás, o que depois acaba por se virar o grande motivo de Ann ficar na cidade. Sua fixação por esse fato, e recusa em reconhecer o abandono de Shawna ou admitir sua participação nele, fornecem o arco emocional central da temporada, que se mostra complicado o suficiente para ser convincente. Ambos os personagens têm outras coisas acontecendo, é claro; O potencial de reavivamento de Mary Ann com o romance de Brian e Shawna com um cineasta (Zosia Mamet), que é ainda mais distante do que ela, dá aos dois personagens espaço para resolver seus problemas.
A real tensão acontece quando se descobre que Anna está sendo chantageada por um fantasma que conhece muito bem sua história (fato dela ser tão misteriosa, pois nunca revelou o segredo que a fez chegar até Barbary Lane primeiramente), e o anúncio, de que colocou a icônica Barbary Lane a venda-o que deixa todos os residentes numa grande surpresa.
Anna é coração emocional central da trama, e a vencedora do Oscar Dukakis faz uma das melhores performances de sua carreira de quase 60 anos.
Em falando em performances marcantes, o show ainda tem espaço para mostrar grandes cristais, como a cena em um jantar, onde um grupo de brancos gays de meia-idade reagem com raiva quando Ben, o namorado de Mouse (que é negro), faz um comentário policiando a linguagem utilizada por eles sobre transfobia e sobre os privilégios dos brancos num tempo onde tudo era mais restrito e incluindo atualmente também. As ideias não saem muito bem explicadas, mas as emoções são absurdamente fortes, porque os mesmo brancos de meia idade falam que podem chamar de “traveco” os transsexuais quando quiserem já que sobreviveram a década de 60 quando houve o surto de HIV e de que Ben não tem o direito de falar com eles sobre a linguagem falada quando ele nunca teve pelo que lutar ou sofrer. Claramente é um insulto e sem sombra de dúvidas, racismo escondido atrás de argumentos sem cabimentos.
Não só com essa cena poderosa os últimos episódios mostram, como um episódio inteiro-precisamente o oitavo- mostrando a chegada de Anna á San francisco e o que a motivou a comprar Barbary lane. O flashback de 1960, acaba por apresentar Anna sendo interpretada por uma mulher trans na vida real (interpretada pela talentosa Jen Richards) e a maravilhosa Daniela Vega como Ysela que fazem um show de interpretação. Outras performances aparecem também, mesmo que em pequenas partes.
Tal como no bar “Corpo Político” em que a personagem de Page trabalha, qualquer um pode ser o que quiser, sem preconceitos, sem rótulos, e ter suas qualidades e defeitos admirados e exclui de uma forma bela a estigmatização e generalização que se tem em outras produções. Base disso, é que a bandeira LGBTQ+ que encerra cada episódio, como mais um dos detalhes que evidencia a proposta. Entretanto qualquer drama focado nessas questões que pode ter um elenco talentoso e queer com apresentações fortes e emocionantes, deve ser celebrado, principalmente nesse mês do orgulho.
O choque de gerações produz interessantes e relevantes discussões para nosso tempo, apresentando argumentos e ideias válidas sobre tópicos como local de fala e rotulação. Esse show é um dos únicos a apresentar personagens principais transsexuais, o que já dá mais um ponto. Não é atoa que personagens como Anna e Mary sempre tendem a falar:
“Aquelas pessoas são minha família” (Those people are my family).