“A questão não é onde. A questão não é quem. A questão não é como. Mas quando.”
Não é rara a sensação de encaramos a vida em ciclos que, em maior ou menor grau, parece repetir situações, traumas e eventos já antes vivenciados. Dark, a primeira produção alemã da Netflix, estreou envolta em mistério, utiliza essa premissa como base para explorar uma fascinante trama de mistérios em que o tempo ancora sua narrativa. A pergunta que todos os 10 capítulos deixa não é “como isso aconteceu?”, mas sim: “quando?”.
A história se passa na cidadezinha pacata de Winden, um município industrial alemão cujo maior destaque é sediar uma usina de energia nuclear que, na história, está sendo desativada. O espectador é apresentado a personagens com grande potencial de desenvolvimento só pelo que carregam de bagagem, como o jovem Jonas Kahnwald (Louis Hofmann), que carrega a angústia de não entender o suicídio do pai ou sua mãe Hannah, (Maja Schöne) que vive um caso proibido com o policial Ulrich Nielsen (Oliver Masucci), homem que entra em uma jornada atrás do filho Mikkel (Daan Lennard Liebrenz) desaparecido. Conforme a história vai avançando, a trama evolui e o espectador é introduzido a uma dinâmica onde passado, presente e futuro coexistem de forma não necessariamente linear.
Dark começa in media res (ou seja, com a trama já em andamento) com o desaparecimento de 3 crianças, o garoto Erik Obendorf, o Mikkel ‘Mads’ Nielsen e Yasin Friese em 2019, algo que rapidamente descobrimos que não é um acontecimento isolado ou inédito naquele lugar e aparentemente ligados à usina de energia nuclear da cidade que é conectada à uma rede de cavernas subterrâneas. Na trama, que tem um aspecto sobrenatural, os desaparecimentos, fazem com que as relações entre quatro famílias sejam o centro de todo o desdobramento da temporada. Dentro dessas famílias, os personagens principais é a família Kahnwald, com Jonas e Hannah, a família Nielsen, com Ulrich, Katharina (Jordis Triebel), Martha (Lisa Vicar), Magnus (Moritz Jahn) e Mikkel, além da família Doppler, com Charlotte (Karoline Eichorn) e Peter (Stephan Kampwirth). Eventos que remontam o passado começam a acontecer, o que já nos dá indícios do que está por vir. Dark utiliza o seu ritmo lento para criar tensão em todos os episódios. Há um crescendo durante os capítulos que vão criando o clímax e não somente um momento catártico próximo do fim. Essa sensação de que tudo pode acontecer a qualquer momento é o que torna as coisas mais aterrorizantes.
Neste ponto, é importante ressaltar o empenho dos criadores Baran bo Odar e Jantje Friese, ao oferecer uma série que mesmo bebendo em fontes diversas, entregam um material original e criativo. Em todo processo de criação ficcional, é preciso estabelecer uma regra. Dark faz isso e mantem sua narrativa focada em apresentar lentamente seus mistérios, sem cair no erro comum da auto-sabotagem.
Além dos desaparecimentos, as amizades, uniões, mortes trágicas e traições também são temas recorrentes em Winden há anos e que parecem estar já dormentes na memória coletiva daquele povoado.
Além disso, todos os personagem atingem níveis de cinza nas mais variadas escalas. Ninguém totalmente bom ou totalmente ruim. Podemos identificar isso em personagens de grande destaque como Ulrich e Hannah. Em diferentes níveis, há um grupo de pessoas em um mesmo local há anos, que variavelmente realizam ações de cunho duvidoso. Desde o marido que trai a mulher até o menino que fica com a namorada do amigo traumatizado pelo suicídio do pai, nenhum deles é capaz de despertar a total simpatia do público, nem mesmo Jonas, que em determinado momento da trama, assim como os outros, age em seu próprio benefício.
Baran bo Odar, que dirige a maior parte dos episódios, Dark é uma ótima pedida para quem gosta de ver histórias de ficção científica sendo usadas como pano de fundo para questões filosóficas. A primeira temporada vai fundo nisso ao debater noções de passado, presente e futuro através de uma ótica pouco ortodoxa enquanto reflete sobre algumas das principais questões que permanecem sem resposta fora da ficção: de onde viemos e, principalmente, para onde vamos?
Dark é basicamente uma nova abordagem para uma típica saga familiar. Ele abrange três períodos de tempo diferentes (1953 • 1986 • 2019 – não coincidentemente separadas por 33 anos entre si. Coincidência, inclusive, é algo que não existe em Winden e logo descobrimos que tudo e todos estão “interligados” pelos mencionados relacionamentos, traumas, tragédias, acontecimentos e, é claro, segredos. O tempo, como a própria série faz questão de martelar, é o que liga tudo). No entanto, há também algumas reviravoltas em relação ao próprio tempo.
Você realmente não deveria saber muito sobre o enredo antes de ver Dark . Tem que ser experimentado em primeira mão. Qualquer outra coisa não faria sentido algum. E você tem que prestar atenção. Há muita coisa acontecendo e como os mesmos personagens são tocados por atores diferentes (por causa dos três períodos de tempo), você pode perder algo importante muito rapidamente. E realmente, parte da diversão e do mistério é tentar adivinhar quem é quem. Por volta da metade da temporada, há um mapeamento claro dos personagens em vários períodos de tempo. Há um número de paralelos acontecendo ao longo do tempo e, portanto, os mesmos personagens (em diferentes períodos de tempo) são mostrados na tela dividida.
Protagonizada por quatro famílias como já falei (os Kahwald, os Tiedeman, os Nielsen e os Doppler), a série faz questão de que seus sujeitos sejam uniformemente estéreis em termos de motivação e personalidade, pois estão todos mergulhados na angústia de viver na cidade Winden sendo parte de algo que sentem ser importante e grande, mas não compreendem (assim como nós, à princípio).
E o elenco de Dark é muito impressionante, inclusive as versões mais velhas dos mesmos personagens são justamente fisicamente parecidos (raro em programas televisivos). Então não há problema em acompanhar realmente. Não enquanto você estiver envolvido e atento.
Graças ao tempo de salto, um adolescente de repente se confronta com seus próprios pais em outro período de tempo. Os pais são adolescentes e, obviamente, não fazem ideia de que a pessoa que estão a conhecer é o seu próprio filho.Isso pode parecer interessante, mas não é necessariamente uma experiência muito positiva porque querendoou não até mesmo os piores adultos podem ter sido crianças gentis. E é ainda pior quando acontece o contrário e você conhece alguns verdadeiros valentões, que você sabe que crescerão para serem seus pais.
Há uma comparação inevitável com Stranger Things mas esta fica somente no aspecto do gênero e alguns elementos referentes à sua ambientação. A série possui a ficção científica em seu cerne, uma usina nuclear sombria e pessoas tentando obter o controle de tudo através da ciência. O tanto é que O tom da primeira produção alemã do Netflix é estabelecido logo na primeira cena do primeiro episódio, em que vemos um homem de feições graves deixar uma carta para ser aberta em um dia e hora específicos e, ato contínuo, enforcar-se. E é justamente que difere Dark de Stranger Things. Dark é bem mais reflexiva e possui temas existenciais em sua premissa,além de ser profundo e pesado em alguns aspectos, principalmente na década de 80, na época onde a Alemanha era o lugar para se estar, bom, a Alemanha Ocidental né. E apesar de se passar em uma cidade do interior, a série não se limita a explorar um evento em si ou um outro mundo. Todas as conexões e desdobramentos das ações dos personagens se encontram e formam um detalhado e complexo quebra-cabeças.
Ao falar do tempo, a série remete diretamente a outras obras que utilizaram o tema na cultura pop, como a trilogia De Volta Para o Futuro, Exterminador do Futuro e Lost, embora utilize uma abordagem mais complicada de assimilar, com o uso de muitos atores que dão vida a vários personagens em muitas versões.Logo, descobrimos que em Winden o tempo é vivenciado de forma cíclica graças à anomalia que existe no sistema de cavernas logo abaixo da usina e é pra lá ou de lá que os desaparecimentos ocorrem, gerando interessantes paradoxos temporais que o roteiro resolve de forma elegante e inteligente.
O conceito de tempo trabalhado em Dark faz com que pensemos passado, presente e futuro como meios para que os fatos aconteçam e não o fim. Ações tomadas no presente influenciam diretamente o que aconteceu há 33 ou 66 anos atrás, assim como o futuro. Mas afinal, o que veio primeiro? Esta é uma das grandes discussões presentes e que se aprofundam quando personagens coexistem com suas próprias versões no mesmo tempo e espaço.
De forma madura e direta, a série consegue evocar o terror na forma de um lento e o gradual suspense de ficção científica, que também abre espaço para a filosofia e explora o drama dos personagens, utilizando bastante o silêncio em seu favor. Mas o único problema desta temporada é justamente um dos seus trunfos: a organização dos eventos. Para isso, a série adota uma linguagem um tanto quanto didática em alguns momentos, com telas divididas que mostram os personagens como eles são no passado e presente. Talvez seja fruto da dificuldade em assimilar tantos nomes em épocas distintas ou apenas um estilo adotado para proporcionar uma melhor experiência do público.
Há uma sutileza muito grande no trabalho da dupla criadora, que faz de tudo para não facilitar a coisa para ninguém, usando clichês de forma inteligente, lógica e original. É como se a série fosse enfocada primeiro no plano-detalhe e, muito aos poucos, a câmera fosse afastada até o plano geral de forma que vejamos o todo, ou, pelo menos, possamos vislumbrar uma boa parte dele.
A fotografia tem um papel importante aqui, pois é ela que mantém a unicidade visual de Dark. A luz – muitas vezes natural ou emulando o natural – é esparsa e difusa, mantendo uma constante impressão de dias nublados, tristes e sem vida. Há um ar claustrofóbico também determinado pela presença constante de estruturas opressivas, como telhados baixos (as casas, a caverna, o bunker, a usina nuclear) e as árvores da envolvente e exasperante floresta quase fabulesca (mas fábulas no espírito clássico, assustadoras). Ainda que a fotografia mantenha essa harmonia visual nas várias linhas temporais, o design de produção se esmera em pontuar pistas visuais que facilitam a identificação do “quando” determinada sequência se passa. São as cores e modelos das roupas, os automóveis, a decoração dos ambientes e outros pequenos detalhes – reparem na entrada da caverna, por exemplo – que centralizam a visão do espectador que não precisa de mais esse desnorteamento ao longo da temporada.
Outro elemento essencial para a efetividade da série é a trilha sonora composta pelo australiano radicado na Islândia Ben Frost, que não se acanha em usar notas fortes para marcar os momentos de suspense. Por vezes seu trabalho arrisca ser um daqueles que tenta ditar como o espectador deve sentir-se, mas o conjunto do que ele cria tende a amplificar o sentimento claustrofóbico que a fotografia tenta passar, além de ajudar no envolvimento com os dramas de cada personagem em suas jornadas essencialmente solitárias.
A série finaliza a temporada fornecendo mais respostas do que se poderia imaginar ao longo dos episódios, mas deixa importantes questões em aberto, como o futuro de personagens importantes e uma maior exploração da enigmática figura de Noah (Mark Waschke). Além de ser uma das melhores estreias da Netflix em 2017, Dark é uma das boas produções do gênero em exibição na TV. O grande mérito de Dark está em conseguir acertar a balança da complexidade: a série não é fácil de entender, mas entrega perguntas e respostas na medida certa para não ser impossível de ser compreendida. O ritmo, nem tão rápido e nem tão lento, é ideal para não sobrecarregar o espectador de informações e o desfecho consegue ser simples sem ser óbvio – pelo contrário, é surpreendente. Jantje Friese e Baran bo Odar conseguiram concluir bem o primeiro ano e deixar boas expectativas plantadas para uma segunda temporada.
Dark é uma série com temáticas maduras e é cheia de reviravoltas – é difícil não se sentir motivado a devorar a série de uma vez só e ficar horas depois pensando em tudo que foi apresentado por ela. Dark mostra que existe muito mais coisa a ser explorada fora do eixo televisivo EUA/Reino Unido.
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