“The guest is God”
Como estabelecemos um código de ética adequado em torno de um filme narrativo que recria dramaticamente um ato de terrorismo da vida real? Quanto tempo nós precisamos permitir entre a ocorrência real da tragédia e sua reflexão Hollywoodualizada na tela, com a qual as pessoas acabariam enchendo seus olhos famintos por entretenimento enquanto mastigavam sua pipoca?
Eu não pretendo ter as respostas para essas perguntas. Eu vou apenas dizer que é complicado – o cinema sempre serviu como um reflexo de seus tempos e os contadores de histórias ainda estão sentindo o caminho através dos horrores únicos do século 21. E ainda não estamos a um quarto do caminho.
Eu levanto essas questões porque elas continuaram rastejando em minha mente enquanto eu assistia e lutava com a assustadora estréia de Anthony Maras, “Hotel Mumbai”, onde cada bala fatal disparada das armas semi-automáticas dos terroristas implacáveis me atingiu na minha cabeça.
O filme, inspirado em um documentário, “Surviving Mumbai”, revisita e retransmite os eventos ocorrido no chamado “11 de setembro” da índia, sob pontos de vista de um conjunto internacional extenso. Os personagens -muito deles criados para a trama-, são os hóspedes e funcionários do Taj Mahal Palace & Tower Hotel, um dos dois hotéis de luxo que os terroristas atacaram, e onde mais de 30 morreram durante o cerco. Mas vamos do começo.
“Atentado ao Hotel Taj Mahal” é uma recriação angustiante de um evento horrível, o atentado de 2008 contra o Taj Mahal Palace Hotel, em Mumbai, durante um ataque em toda a cidade por dez membros de um grupo terrorista islâmico radicado no Paquistão.
O suspense se constrói desde a primeira cena. No filme, os atacantes – membros da milícia islâmica Lashkar-e-Taiba – nunca são identificados realmente, mas não há mistério sobre seus sentimentos anti-Índia. Quando o filme é aberto, um grupo de homens mal-humorados se aproxima de Mumbai de balsa, com seu líder, identificado como o “Touro” e ouvido apenas por telefone, incitando seus companheiros a olharem para o horizonte da cidade e “ver o que eles roubaram de você.” Considerando as tensões de longa data entre a nação predominantemente muçulmana do Paquistão e sua vizinha, a Índia predominantemente hindu, não é difícil fazer a matemática. Os indianos serão os alvos principais, junto com os ocidentais endinheirados, cuja proeminência os terroristas esperam usar para chamar a atenção para sua causa.
Por um bom tempo, o filme é um tique-taque de violência horrível, que começou na principal estação de trem da cidade. Sendo que acabou ocorrendo dez atentados terroristas sincronizados que atingiram a capital financeira e, além da destruição de lugares icônicos e a promoção do terror, deixaram um rastro de sangue com mais de 190 mortos e outros 300 feridos. Entre tantos ataques que só foram terminar definitivamente três dias depois. “Atentado ao Hotel Taj Mahal” passa rapidamente – mas com energia – por dois e apresenta num terceiro ataque, no local que dá nome ao filme, um entretenimento robusto e cheio de tensão, com doses cavalares de dramaticidade que dão nó na garganta e sequências violentas que funcionam praticamente como seguidos golpes no estômago. O longa não poupa o espectador de imagens fortes e de sofrimento e o faz sentir, de maneira eficiente, as horas intermináveis de desespero dos funcionários e hóspedes do Hotel Taj Mahal.
É perturbador, para dizer o mínimo, vê-los se moverem pelo prédio, matando pessoas (muitas vezes graficamente) como se estivessem atacando moscas, e parando apenas para lanchar os restos de comida de um carrinho de restaurante
Como thriller, é eficiente, se formular e tecnicamente proficiente, se não for distinguido. Ainda assim, neste momento marcado pelo tempo, quando somos cercados por relatos de tiroteios em massa e imagens de matança angustiante, como justificamos assistir mais do mesmo entretenimento, a menos que isso nos diga algo que não conhecíamos?
Esse filme de ação, hábil e histórico, foi um dos mais difíceis e inquietantes de se assistir. O clima de tensão e suspense foi mais difícil que o “22 de julho” de Paul Greengrass. Cheguei em vários momentos a sentir arrepios e os próprios sentimentos de desepero nesse filme com o comando inabalável de câmera e ação do diretor Anthony Maras, que conseguiram me colocar mentalmente e fisicamente entre as incontáveis vítimas e sobreviventes do majestoso Taj Mahal Palace Hotel, onde a maioria de seu filme (co-escrito por Maras e John Collee) está definido.
No “Hotel Mumbai”, a dupla de escritores enfatiza persistentemente a humanidade complexa dos personagens. Nisso, não estamos apenas assistindo a uma batalha magistral e mal planejada entre o bem e o mal. Há nuances no bem e uma hierarquia abusiva dentro do mal, delicadamente retratada para não fazer o público sentir pelos terroristas, mas para ajudá-los a entender a refrigeração indestrutível das redes de terrorismo e a mentalidade terrorista.
Para os propósitos da história, um único casal incorpora esse conflito central e uma de suas contradições: David (Armie Hammer-“Me chame pelo seu nome”) e sua esposa, Zahra (Nazanin Boniadi), um casal jovem e rico com um novo bebê e uma babá (Tilda Cobham -Hervey). Eles se tornam, pelo menos por um tempo, os aparentes protagonistas da história, mesmo quando os terroristas percebem que Zahra é muçulmana. Sua recitação do Alcorão não suaviza seus corações – ou os impede.
Como se constata, os heróis do filme não são David e Zahra, mas sim a equipe do hotel, personificada por um garçom, Sikh (Dev Patel-“Lion: Uma Jornada Para Casa” e “Quem Quer Ser Um Milionário?”, interpretando um personagem criado) e o desinteressado chef do hotel, Hemant Oberoi (Anupam Kher– O Lado Bom da Vida, personeficando uma pessoa real), que lidera um grupo de outros trabalhadores da hospitalidade para ajudar a salvar seus convidados.
Ao mesmo tempo, o antagonismo, por si só, não tem nem mesmo forma à mostra. Ele é uma voz, que percorre e alimenta toda a perversidade praticada pelo grupo de terroristas. O vilão (por assim o ser) é alguém que distorce palavras e, com uma competência desvirtuada, consegue moldar mentes frágeis e em formação. Nesse sentido, pode ser perceptível o quanto os protagonistas falam e reforçam que os assassinos são garotos e o quanto, pouco a pouco, passa-se a conhecer as motivações deles. O mal oculto, desconhecido, age aqui como em um filme de terror. É ele quem mata (do planejamento às ordens), é ele quem provoca uma chacina e, mesmo assim, permanece invisível.
A complexidade de um lado e o direcionamento feito por alguém intocável do outro alimenta uma tensão contínua. É uma aflição que, já tão bem contida no roteiro, talvez não precisasse ser exponenciada pela direção. Maras, por essa lógica, fica a um passo do sadismo. Ao não se privar de mostrar o grafismo da violência. E essa abordagem faz com que Atentado ao Hotel Taj Mahal seja um filme perigoso, porque, enquanto procura a imersão do seu público por meio do grafismo, ele não deixa de relembrar que todo aquele ato aconteceu na vida real. Misturando cenas de arquivo (de 2008) às filmagens da ficção, a direção de Maras e a edição também do próprio diretor junto a Peter McNulty (de Lendas do Crime) têm um poder quase doentio, capaz de fazer as cenas fictícias serem sentidas como reais.
“O hóspede é Deus”, Oberoi lembra um grupo de funcionários que se voluntariam para ficar para trás e fazer o que podem enquanto esperam por ajuda externa. A frase indica serventia, inferioridade, mas passa a simbolizar algo mais poderoso. É uma linha feita sob medida para um filme de ação – um em que os heróis não usam capas, mas crachás e aventais – e classicamente inquietante.
A insensibilidade com que os terroristas operam é palpável e transmitida com um grau de verossimilhança que beira o sadismo.
Eles riem de suas ações e são calmos para matar, jamais nervosos, pois têm a certeza de que Alá os perdoará e os receberá no paraíso graças ao seu feito. A interpretação dos atores que dão vida aos terroristas é outro fator que eleva a força da narrativa, já que eles encarnam seus personagens com bastante desumanidade. Ainda que as atitudes deles sejam abomináveis e injustificáveis, o roteiro habilmente consegue apresentar situações em que alguns personagens deixam transparecer sua origem frágil e um intelecto débil, que os impossibilita de enxergar que o mentor deles não se importa com seu destino mortífero, ao passo que seu Deus também não os espera em um paraíso. Esse é mais um ponto delicado no qual o argumento de Collee e Maras choca e faz valer a precisão.
A sobriedade é tamanha que Maras e Collee se arriscam, no meio disso tudo, a humanizar seus terroristas de forma que soa crível. Tão pobres, tão removidos de todo o resto da sociedade e tão afundados no discurso odioso do líder que se comunica através de seus rádios, os atiradores soltam piadas ocasionais em meio à matança, brigam com o próprio inglês quebrado quando devem interrogar um refém estrangeiro e fazem telefonemas emocionados aos parentes, acreditando realmente que serão retribuídos por seus feitos. Os pequenos momentos de humanidade que se encontram espalhados pelo filme não estão apenas reservados às vítimas do atentado, retratadas também com profunda empatia, e esta é uma decisão das mais ousadas. É uma tragédia, mas uma tragédia humana.
Essa tensão é, naturalmente, uma das coisas mais problemáticas (e, portanto, interessantes) sobre o “Hotel Mumbai”, que poderia facilmente ter ido em outra direção: uma em que os personagens interpretados por atores de renome obtêm toda a glória. . Isso não acontece aqui. O personagem de um homem de negócios russo durão, por exemplo, interpretado por Jason Isaacs, é singularmente desagradável e sexista – para não mencionar condenado.
No fundo, os criadores do “Hotel Mumbai” não se importam com o que começou o ataque (exceto, talvez, como a motivação subjacente dos terroristas é irracional). Eles estão mais intrigados com quem parou – ou pelo menos quem ajudou algumas de suas vítimas a sobreviverem. Eles nem sempre são pessoas cujas vidas e cujos sacrifícios nós pensamos – ou mesmo notamos – quando ficamos em hotéis chiques. Mas há um radicalismo silencioso em fazer um filme que é, no fundo, tudo sobre eles.
É sempre injusto pedir a um filme para ser algo que não é: “O Hotel Mumbai” era para ser um thriller de ação, e é isso que é, para melhor ou – principalmente – pior. Mesmo assim, não posso resistir a mencionar um aspecto autenticamente inspirador do evento que o roteiro mal sugere, depois relega algumas palavras em um cartão de título durante os créditos finais. É o espantoso altruísmo exibida pela equipe do Taj durante o horror – não apenas algumas boas almas como Arjun Patel, levando os convidados à segurança, mas centenas de trabalhadores que, sem exceção, tiveram um desempenho magnífico, escolhendo a segurança de seus convidados e, em alguns casos, sobre os membros da família que trabalham em outras partes do hotel.
E se me permitem, vou descrever um pouco em tom bem pessoalcomo me senti ao ver a película. Isso porque, ao final, eu estava atordoado. Não sabia o que pensar, não sabia o que fazer. Eume tremia e meus olhosnão paravam de lacrimejar além do coração acelerado. Eu estava tentando processar, e nem conseguia entender direito o que tinha visto. Quando finalmente entendi. Costumo me entregar a qualquer filme e tento sempre uma conversa mais íntima com a obra, mas nessa, acabei me deixando ir pelo quão imerso e causado pela direção de Anthony Maras estava– que eu nunca que ia falar que é um estreante nos longas-metragens.
Ainda há espaço para discussões pontuais sobre o domínio exercido pela religião – quando má interpretada e má disseminada – e sobre a influência da mídia para a vida ou para a morte. Neste caso, assistir a um canal de televisão revelar sobre a fuga de dezenas de pessoas que permaneciam escondidas dentro do luxuoso hotel soa com um grau de ingenuidade e egocentrismo midiático que, na prática, a própria informação transforma-se em cúmplice das mortes que se seguem.
Além de tanto, a utilização dos terroristas como personagens principais de uma crítica social sobre o sistema de castas da Índia é fundamental para entender, igualmente, a divisão de classes e o grau de revolta que pode ser frustrar-se pela falta de oportunidades. Assim, se ficar impressionado com uma “máquina que leva a merda embora” parece ser um exagero, não é necessário ir a outro continente para encontrar situações semelhantes.
E por fim, o telespctador fica chocado com a insensibilidade com que os terroristas operam, que é palpável e transmitida com um grau de verossimilhança que beira o sadismo. Tirando esse fator, não temos como reclamar de qualquer ator, pois o longa é bem produzido e muito bem interpretado por cada um deles. Um exemplo disso são as cenas de tiros – que acontecem o filme todo – que parecem muito reais, as pessoas caídas pelos chãos são bonitas de se ver, no sentido de fotografia e atuação.
Como estabelecemos um código de ética adequado em torno de um filme narrativo que recria dramaticamente um ato de terrorismo da vida real?
É a pergunta que ainda fica na cabeça.
Estamos diante de um filme capaz de gerar muitos questionamentos, muitas sensações; uma obra preparada para incomodar, para tirar da zona de conforto, mas, simultaneamente, para chocar com uma crueldade que quase ultrapassa o limite do aceitável. Isso tudo embalado em uma produção tão bem escrita e tão cheia de conteúdo que fica muito difícil desprezar. De minha parte, estou ansioso para ver o que o promissor Maras fará a seguir.
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